quarta-feira, 22 de junho de 2011

Os Esquecidos







Neste sábado, 25 de Junho, às 17 horas, no Cineclube da Casa


LOS OLVIDADOS, de Luis Buñuel, México, 1950




A crítica de Eulàlia 1



Os esquecidos
Algumas linhas sobre o filme
Eulàlia Jordá-Poblet, 2011

Não há dúvidas de que Buñuel realizou uma proeza rara neste filme “Os esquecidos”, realizado na década de 50, no México.
Realmente seu título, minimalista, conciso, abarca a totalidade dos personagens e os resume como aqueles que são os esquecidos da sociedade: malfeitores, abusadores de crianças, adolescentes, meninas, cães abandonados das ruas. Ninguém neste filme consegue ser “out”, todos pertencem a um conjunto que se harmoniza como em uma orquestra, cujas sonoridades se complementam em um quebra-cabeças de sonoridades tristes, trágicas, sombrias.
Em nenhum momento o gênio de Buñuel duvida das cartas marcadas observadas como que por detrás de uma porta através de um olho mágico, o olho do cineasta. Inflexível, encaminha sua mira certeira para a previsibilidade das tragédias sociais cujos elementos somados confirmam uma matemática angustiada, inexorável.
E olhem que em 1950, estes elementos ainda possuíam uma escala humana, palpável. Sessenta anos depois, tal escala se perdeu, as estatísticas tomaram seu lugar, os números de desassistidos, de “esquecidos”, de tão absurdamente altos, banalizaram-se. Hoje não há mais lugar para a pena, para a caridade, para a comiseração. Quero dizer que , na época da realização do filme, havia o velho cego, havia a mãe pobre e seus filhos, havia o “pederasta”, a criança desamparada, o rapaz ladino (Jaibo), o instituto correcional para os menores infratores, e que, bem ou mal, havia um lugar para todos bem definido, mesmo que para compor em uníssono uma desgraça.
Hoje o filme teria traços bem diferentes, não poderia ficar centrado apenas no humano, pois este foi, definitivamente, deixado de lado.
No filme “Os esquecidos”, todos sofrem, todos experimentam a bondade e a maldade, todos dão e recebem seu quinhão de dor.
Alguns personagens, no entanto, parecem ser naturalmente melhores que outros. À medida da progressão do filme, vê-se, no entanto, que pode ocorrer que eles ainda não tenham sido atingidos pelo veneno que se apresenta nestes lugares onde a luta para sobreviver é diária e extenuante, onde comer é uma proeza e lavar-se, um luxo. A ingenuidade dura pouco tempo quando têm -se que estar atento e incansavelmente optando pelo ataque ou pela defesa.
As respostas agressivas quase sempre são reativas e contraditórias (morte das galinhas pela mesma criança que a algum tempo atrás amava os animais), delicadezas surgem raramente na vida real (troca de presentes entre a menina e o mexicanozinho do interior), sonhos tentam transmutar a realidade mas acabam se transformando em pesadelos (a jovem mãe que, apenas no sonho do filho, conversa calmamente e lhe traz um enorme pedaço pedaço de carne , carne esta que logo é roubada pelo rapaz-problema-Jaibo, não chegando, por pouco, às mãos do garoto).
E é assim que ocorre tudo: por pouco. Por pouco a mãe perversa poderia se reconciliar com o filho que lhe pede, que suplica por seu amor. Por pouco ela poderia salvá-lo do instituto correcional. Por pouco ela poderia ter descoberto que era seu filho morto aquele jogado sobre o burrinho e, ao menos nesta hora, tê-lo amado e dele se despedido em um enterro digno. Por pouco Jaibo poderia ter se casado com a jovem viúva e experimentado pela primeira vez uma vida em família e o amor de verdade. Por pouco o diretor poderia ter salvado, não fosse a aparição de Jaibo, o menino de boa índole da prisão e da morte. Por pouco o mexicanozinho poderia ter tratado o velho cego como se fosse seu avô e este o amado como a quem ama um neto. Por pouco o velho cego poderia ter sido um avô para a menina que lhe traz o leite enquanto esta poderia tê-lo acarinhado ao invés de ter que odiá-lo pela conduta libidinosa em relação a ela.
E o que, para o cineasta, poderia ter eliminado este “pouco” para que seus personagens pudessem escapar da inevitabilidade de seus temíveis destinos? A resposta está já no início do filme, no “progresso” que um dia – segundo Buñuel e seu roteiro - esperançosamente virá , trazendo emprego, bens materiais e civilidade nos relacionamentos. Também vem pela boca do diretor do instituto de correção de menores, único personagem a possuir o privilégio de poder distanciar-se da situação e ter cultura suficiente para extrair dali uma crítica menos contaminada pelo preconceitos. É ele que têm a lucidez de dizer que é preciso profissionalizar os jovens, acreditar neles, na sua potencialidade, na sua responsabilidade.



A crítica de Eulàlia 2


Os animais de Buñuel
Eulàlia Jordà-Poblet, julho de 2011



Em “Os esquecidos”, os animais ora surgem para compor a cena, acentuando o drama, confirmando a miséria e o abandono ao qual os personagens estão entregues, ora assumem papéis fundamentais que podem passar despercebidos por olhares menos treinados, uma vez que as pessoas estão acostumadas a apenas “notar” os animais como “atores” coadjuvantes, e isto, na melhor das hipóteses.
As cenas exteriores, farta em mostrar cães magros, sem rumo, lembram a frase de Lygia Fagundes Telles que ao tentar explicitar o que sentia ao ver os cães abandonados nas ruas, comparou-os a “nuvens errantes”. Os cães do filme se apresentam tal qual estas nuvens, que vão para lá e para cá, sem nenhum sentido a não ser o de uma vida repleta de dor e de fome crônicas, pior ainda porque associada a uma ingenuidade própria do cão diante da violência humana.
São eles, no entanto, na primeira parte do filme, responsáveis por uma das raras cenas de bem-aventurança e paz naquele bairro pobre mexicano . A cena funciona como uma bandeira branca no cenário que vai se tornando cada vez mais noturno, denso, sombrio. Ocorre depois que o meninozinho mexicano, oriundo do “campo”, decide abandonar o choro e lutar por sua vida, comendo e socializando-se com o mundo da forma como ele se apresenta. E nesta cena belíssima ele se associa ao outro menino abandonado pela mãe, logo ele, menino abandonado pelo pai, enquanto os cães, abandonados por todos, a eles se reúnem compondo um quadro de graciosa solidariedade. Graciosa em todos os sentidos: pela gratuidade da amizade entre seus componentes e que não passa por um preço, e pela espontaneidade que as crianças e os animais têm. Embora a noite onde os meninos/cães mergulham esteja à espera, como que para tragá-los com seus perigos, o espectador têm a sensação fugidia e balsâmica de que, pelo menos aquela noite será calma e protetora para seus personagens.
Há horas que os animais assumem as cenas principais de forma ativa, comunicando-se pelo olhar e pela postura com os humanos. É a cena com a burrinha que, através da janela, comunica à menina que ocorreu algo no estábulo ,terrível : o assassinato do menino pelo rapaz Jaibo. A menina, através do olhar do animal fixo no seu, “entende” o recado. Cá entre nós, não é raro que esta comunicação ocorra entre um animal e uma criança, ao invés, por exemplo, do animal com o avô desta. Muitas vezes as crianças, por não terem incorporado ainda os pré-conceitos contra os animais injetados na sociedade adulta, os “ouvem” e percebem muito melhor. Em oposição a isso, os adultos costumam ver os animais apenas como base da sua atividade econômica. “Cuidado com os animais”, frase do avô, relaciona-se muito mais com evitar o roubo do sustento que o leite da burrinha lhes dá, do que cuidar dos animais em si, pela amizade, pela afetividade (embora, sejamos justos, o avô é um dos personagens mais responsáveis e afetivos do filme). De qualquer forma o avô cuida da menina, que nele muito confia, e sua preocupação com os animais é exemplar para ela que os cuida ( o valor do exemplo).
Aliás , também não é de se estranhar que menina alta e o menino mexicano se sintam atraídos um pelo outro, apesar da grande diferença de idade. Ambos sabem das forças da natureza, descobrem-se vagamente homem e mulher, conhecem através dos animais o afeto, trocam presentes, se protegem um ao outro.
É muito curioso que os melhores personagens, aqueles que possuem mais características de boa índole, são justamente os que interagem de forma harmônica com a natureza, fazendo parte dela ao invés de tentar dominá-la como o faz ininterruptamente Jaibo , o personagem que é mais agressivo. A cena do menino do campo, mamando diretamente o leite nas mamas da burrinha, assaltando de espanto ao outro menino e ao espectador, é simplesmente antológica. Seu significado é que não há nenhuma barreira entre ele e a natureza, apenas a simbiose, a verdade, o fim das imposturas. A cena nos diz claramente, sem que se deixe nenhuma dúvida: Somos todos animais, não há diferença essencial!
A boa índole do menino preterido da mãe – reconhecida por esta particularidade, mais adiante, pelo diretor do instituto de correção de meninos infratores – é confirmada explicitamente por sua frase desesperada dirigida à mãe: “Não bata nos animais!”. E nesta hora o espancamento das galinhas é mostrado durante alguns segundos. Não fosse cena importante, preciosa para o entendimento da trama, Buñuel não a teria escolhido. Buñuel sabia o que fazia, era muito específico. A crueldade para com os animais, desejava o cineasta dizer e demonstrar, está ligada de forma íntima a ambientes propícios à violência humana. E nela funciona um ‘jogo de passar o bastão’ em que os menos favorecidos, aqueles que menos se podem defender (crianças, deficientes, velhos, animais, mulheres), são os receptores finais da violência em seu estado máximo. E é bom lembrar que é este mesmo menino que mais adiante matará cruelmente as galinhas do instituto correcional, de forma reativa e impensada, como em uma canalização incorreta de sua raiva por tantas injustiças que lhe são cometidas. É assim que o justo torna-se injusto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestões, críticas, reclamações: