Querelle, de Rainer Werner Fassbinder, baseado em Querelle de Brest, de Jean Genet.
A crítica de Eulàlia
Querelle
sobre a presença da mulher neste filme de Fassbinder, e outras notas
Eulàlia Jordá-Poblet, julho 2011
Realizado em 1982, é um filme magnífico e didático, que traz Jean Genet e Fassbinder escondidos juntos sob a pele de ‘Seblon’ e seu gravador, Oscar Wilde escondido no canto de ‘Lysiane’, o namorado preferido de Fassbinder, explicitado e homenageado na personagem ‘Querelle’.
A estética gay está neste filme, presente em toda sua glória que beira a caricatura. Portos sórdidos, marinheiros e seus bonezinhos, trabalhadores braçais, prostíbulos, bares surreais, bonés prateados, anéis de pedras preciosas, uniformes militares e policiais, rostos glaciais, Fassbinder dirige todo esse universo de criaturas e objetos notáveis e específicos com a mão de artista muito familiarizado com o jogo “entre homens”, cujo herói máximo, aquele que reúne todas as características necessárias para sê-lo dentro das condições propostas pelo enredo, é Querelle, o marinheiro.
É claro que não há estética gay sem uma diva, e ela será, nada mais nada menos, interpretada – de maneira inesquecível e marcante – por Jeanne Moreau. A personagem Lysiane representa a todas as mulheres, com seu olhar felino, que observa, que tenta captar, entender, dissecar o que ocorre naquele ponto de convergência sexual que a deixa de lado. Que ninguém se engane! Ela a tudo acompanha apenas porque deseja entrar no jogo e é por isto que ela joga as cartas. Mas seus poderes são bem poucos, neste sentido, o de atrair o desejo para si, uma vez que o desejo é para eles. O desejo, para ela, chega apenas distorcido através de espelhos, recurso maravilhosamente empregado pelo cineasta nas cenas de alcova em que ela filosofa , além da presença física de seus “amados”, quase que como se reservasse apenas para si mesma as perplexidades, uma vez que é bem pouco ouvida, ou melhor, ouvida apenas de forma distraída.
O seu interesse em compreender o processo, justamente por ser a excluída, digamos ainda melhor, a ‘excluída-incluída’, é muito maior do que o daqueles que fazem da sexualidade um jogo perigoso e fascinante, porém despreocupado, no qual a morte está sempre à espreita.
E não é esta a temível previsão no oráculo de sua canção, que se repete, se repete em uma espécie de mantra anunciador “todo mundo mata aquilo que ama”...? Ela sabe como ninguém, como a ‘espectadora-participante’ que é, onde tudo irá acabar. É a única que protesta em relação a uma cena que poderá levar à morte a Querelle ou ao seu irmão. Protesta porque têm amor pelo irmão de Querelle e o quer vivo, vivo para ela. Mas protesta fundamentalmente por ser mulher em um mundo cujo protesto é completamente ineficaz, pois é regido por outras forças fundamentais.
Sob a maestria de Fassbinder, Lysiane – não por acaso uma mulher madura- surge na ótica clássica gay, representando a mãe fálica, poderosa, vestida de negro e brilhos, mas também como a Nossa Senhora, Mãe de Cristo, coroada com um véu azul semi-infantil, acompanhando ao martírio de Querelle e o Calvário de todos. Neste sentido há sempre elementos simbólicos cristãos semeados cuidadosamente por vários trechos do filme: mastros que se entrecruzam, paus que formam cruzes ao chão, gestos com braços em cruz dos atores contra as paredes, alusões à Pietá amparando ao Filho em seus braços. E é na fábula mais famosa da sociedade ocidental, aquela que têm na apresentação da nudez de Cristo profanada – este apenas um homem jovem de 33 anos - a degradação máxima do corpo e do espírito, a aparição de um elemento muito importante no contexto gay, a temática da humilhação.
É Lysiane que realiza também atos corriqueiros entre as mulheres , temidos ainda mais pelos homens heterossexuais, tais como comparar as atuações dos diversos amantes na cama, comparar os ‘paus’. Ela faz chegar até eles suas exigências sexuais vampíricas através de discretas observações. Existisse esta fada fálica, fálica também de inteligência e sabedoria em um mundo hetero, a dominação seria completa. Ou não é completa também no mundo homo? Porque nele quem domina, por trás, é a figura materna: que não haja dúvidas também quanto a isso.
Em outra vertente, há personagens no filme que apenas teriam a conjunção carnal com uma mulher se esta estivesse presente em um corpo masculino, ou, por outro lado, diretamente com o corpo de uma mulher desde que ela lhes remetesse, no instante do gozo, aos olhos, aos cílios, à boca de um homem (de preferência um irmão que se assemelhe), ou seja, mais uma vez o sexo somente se estabeleceria através de um esforço de jogos de espelho.
Lesbos também comparece em cena rápida (duas mulheres em uma ponte).
Incrível é a tomada final, quando Lysiane, ao ler as cartas, gargalha com escárnio, vingativamente, e profere em alto e bom som (observem que é a mulher quem resolve o enigma) : Querelle não existe! Querelle não existe! E o diz ao irmão de Querelle, aquele que têm um duplo, praticamente um gêmeo não univitelino, um semelhante em tudo e por tudo. Será porque Querelle – em toda sua perfeição sonhada: rigidez muscular, força, sagacidade, capacidade de perversão - teria sido uma invenção? Narciso se apaixonou, afinal, não foi por si mesmo espelhado nas águas?
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